Benditos
sejam os inimigos.
Dante já
sabia que Maomé era terrorista. Por alguma razão o colocou em um dos círculos
do inferno, condenado à pena de prisão perpétua. “O vi partido”, celebrou o
poeta em A Divina Comédia, “desde a barba até a parte inferior do ventre…”.
Mais de um Papa já tinham comprovado que as hordas muçulmanas, que atormentavam
a Cristandade, não eram formadas por seres de carne e osso, eram um grande
exército de demônios que aumentava quanto mais sofria com os golpes das lanças,
das espadas e dos arcabuzes.
Hoje em dia,
os mísseis fabricam muito mais inimigos que os inimigos das entranhas. Porém,
que seria de Deus, afinal de contas, sem inimigos? O medo impera, as guerras
existem para desbaratar o medo. A experiência prova que a ameaça do inferno é
sempre mais eficaz que a promessa do Céu. Benditos sejam os inimigos. Na Idade
Média, cada vez que o trono tremia, por bancarrota ou fúria popular, os reis
cristãos denunciavam o perigo muçulmano, desatavam o pânico, lançavam uma nova
Cruzada, o santo remédio. Agora, há pouco tempo, George W. Bush foi reeleito
presidente do planeta graças ao oportuno aparecimento de Bin Laden, o grande
Satã do reino, que as vésperas das eleições anunciou, pela televisão, que ia
comer todas as crianças.
Lá pelo
ano de 1564, o especialista em demonologia Johann Wier teria contado os
demônios que estavam trabalhando na terra, a tempo integral, a favor da
perdição das almas cristãs. Eram sete milhões quatrocentos e nove mil cento e
vinte sete, que agiam divididos em setenta e nove legiões.
Muita
água fervente passou, depois daquele censo, debaixo das pontes do inferno.
Quantos são, hoje em dia, os enviados do reino das trevas? As artes do teatro
dificultam as contas. Estes falsos continuam usando turbantes, para ocultar seus
cornos, e longas túnicas tampam os rabos do dragão, suas asas de morcego e a
bomba que carregam debaixo do braço.
BENDITOS
SEJAM OS INIMIGOS: O DEMÔNIO É HOMOSSEXUAL
Em nenhum
lugar do mundo se levou em conta os muitos homossexuais condenados ao suplício
ou a morte pelo delito de sê-lo.
Desde
1446, os homossexuais iam para a fogueira em Portugal. Desde 1497 eram
queimados vivos na Espanha. O fogo era o destino merecido pelos filhos do
inferno, que surgiam do fogo.
Na
América, ao contrário, os conquistadores preferiam jogá-los aos cachorros.
Vasco Núnez de Balboa, que entregou muitos deles para a refeição dos cães,
acreditava que a homossexualidade era contagiosa. Cinco séculos depois, ouvi o
Arcebispo de Montevidéu dizer o mesmo. Quando os conquistadores apontaram no
horizonte, só os astecas e os incas, em seus impérios teocráticos, castigavam a
homossexualidade com a pena de morte. Os outros americanos a toleravam e em
alguns lugares a celebravam, sem proibição ou castigo.
Essa
provocação insuportável devia desencadear a cólera divina. Do ponto de vista
dos invasores, a varíola, o sarampo e a gripe, pestes desconhecidas que matavam
índios como moscas, não vinham da Europa, mas sim do Céu. Assim, Deus castigava
a libertinagem dos índios que praticavam a anormalidade com toda a
naturalidade.
Nem na
Europa, nem na América, nem em nenhum lugar do mundo se levou em conta os
muitos homossexuais condenados ao suplício ou a morte pelo delito de sê-lo.
Nada sabemos dos longínquos tempos e pouco ou nada sabemos dos tempos de agora.
Na
Alemanha nazista, estes “degenerados culpados de aberrante delito contra a
natureza” eram obrigados a exibir a estrela amarela. Quantos foram para os
campos de concentração? Quantos lá morreram? Dez mil? Cinquenta mil? Nunca se
soube. Ninguém os contou quase ninguém os mencionou. Tampouco se soube quantos
foram os ciganos exterminados.
No dia 18
de setembro de 2002, o governo alemão e os bancos suíços resolveram “retificar
a exclusão dos homossexuais entre as vítimas do Holocausto”. Levaram mais de
meio século para corrigir essa omissão. A partir dessa data os homossexuais que
tinham sobrevivido em Auschwitz e em outros campos, se é que ainda haja algum
vivo, puderam reclamar uma indenização.
EDUARDO
GALEANO
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