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segunda-feira, 17 de abril de 2017

As implicações políticas de ser evangélico no Brasil e as eleições



Por André Egg 

Ser evangélico é uma coisa que se insere numa longa tradição. O fundamentalismo propõe uma não-historicidade, uma ruptura com a tradição protestante, em nome de uma postura isolacionista que é um engajamento às avessas: financiados por interesses capitalistas bem específicos, os ditames dos “fundamentais” da fé servem para congelar a reflexão e barrar as tentativas de transformar o mundo, lançando os adeptos dessa corrente numa expectativa da vida pós-morte no paraíso e condenando qualquer ativismo por justiça social na terra. Resta como única opção válida de atuação política a defesa dos interesses mesquinhos da igreja como instituição, jamais como veículo de implantação do Reino de Deus. Ou a defesa da “fé bíblica”, desde que entendida dentro da concepção de interpretação bíblica congelada pelo próprio dogma dos “fundamentais”, sem o que, afirma-se, não existe cristianismo.

 

 

 Isso provoca um curto-circuito no Evangelho de Cristo e na posição profética da sua Igreja, coisa que nunca esteve tão ameaçada na face da Terra como nos tempos em que o Fundamentalismo se arvorou em única forma legítima de fé cristã.

 

Qualquer estudo, por superficial que seja, da história da fé cristã mostra uma religião não-conformista. Primeiro dos discípulos e seguidores de Jesus em relação ao judaísmo tradicional e à aristocracia dos Saduceus do Templo, implantando um igualitarismo comunitário tão radical que levou às perseguições romanas, à medida que a religião (de rápida difusão no mundo Mediterrâneo) punha em cheque os fundamentos escravistas do Império.

 

Depois da religião assumir a face de uma estrutura hierárquica rígida fundada na autoridade episcopal, no apoio político do Império e no estabelecimento da ortodoxia doutrinária, nunca faltaram as dissidências e divisões – condenadas sob a pecha de heresias, brutalmente extirpadas, ou resultando em divisões que tornaram o cristianismo uma religião cada vez mais multi-facetada.

 

Classificar-se como evangélico no Brasil significa inserir-se no Cristianismo Ocidental, com suas tradições teológicas e sua obsessão pela ideia de Reforma. Desde o século X o termo está sempre nas bocas dos teólogos e dos fiéis. É preciso reaproximar a igreja e o clero do modelo do Cristo dos evangelhos, cada vez mais afastada pela promiscuidade política do alto clero episcopal – tornado uma aristocracia territorial com interesses arraigados e práticas escusas como compra de cargos, guerras e assasssinatos. O papado, por sua vez, tornou-se, desde Gregório Magno, um Estado territorial com interesses próprios e forças armadas. Dos conflitos de interesse entre o povo pobre (aliado aos monges vistos como modelo de fé pura) e a aristocracia eclesiástica, bem como dos Estados Papais com os diversos reinos europeus, surgiram uma série de movimentos político-teológicos mais ou menos violentos, que culminaram na divisão definitiva da cristandade no século XVI: de um lado os fiéis à igreja de Roma, de outro as várias igrejas que surgiram em outros cantos: anglicanos na Inglaterra; luteranos em alguns estados alemães; zwinglio-calvinistas em várias cidades da Suíça, Alemanha e França, na Escócia e na Holanda, além dos grupos dissidentes na Inglaterra; anabatistas onde quer que houvessem revoluções camponesas.

 

Em todos estes movimentos reformadores, havia em comum a dissidência política vestida de argumento teológico. Era a gente comum derrubando a autoridade centralizada da igreja romana. Anabatistas contra os dízimos e o batismo infantil, recusando-se ao serviço militar e aos cargos públicos. Luteranos abraçando o livre-exame das Escrituras e o Sacerdócio Universal de todos os crentes, abandonando a Vulgata e adotando a Bíblia e os cantos litúrgicos em sua própria língua – recusando-se a pagar tributos eclesiásticos a Roma. Os anglicanos preferindo submeter-se à monarquia pátria e recusando-se obedecer ao Papa. Os zwinglio-calvinistas abandonando toda a liturgia que não fosse encontrável na Bíblia, queimando órgãos e livros de corais, traduzindo os Salmos para o francês para cantá-los no culto. Em todos os lugares, luteranos, calvinistas e anabatistas foram à guerra contra reis, príncipes e bispos, para exigir autonomia, governo democrático nas igrejas, uma teologia e uma liturgia voltados para o povo e os problemas de seu tempo.

 

Os calvinistas ingleses (puritanos) fuzilaram seu rei. Os da Holanda lutaram uma guerra sangrenta para se tornarem independentes da Espanha. Os franceses (huguenotes) lutaram por séculos para praticar sua fé diferente da romana. Os hussitas na Boêmia tinha garantido com canhões, um século antes de Lutero, poderem tomar a ceia à sua maneira, e celebrar o culto em tcheco. Na Escócia, liderados por John Knox, os calvinistas lutaram contra a rainha para poder estabelecer suas convicções religiosas, fazendo surgir a igreja presbiteriana. Diversos desses inconformistas migraram para as colônias britânicas na América, especialmente a região da Nova Inglaterra, fugindo dos conflitos europeus, e estabelecendo o paraíso do self-government congregacional.

 

No Brasil, os protestantes começaram a se estabelecer por exigência do comércio com a Inglaterra em 1810, e a partir de 1824 para receber imigrantes não católicos (principalmente alemães luteranos e suíços calvinistas). Os protestantes brasileiros foram fundamentais para estabelecer um sistema educacional mais moderno, abandonando a Ratio Studiorum dos jesuítas, implantando os colégios mistos e a ênfase nas ciências, na Educação Física e no pensamento investigativo. Protestantes brasileiros lutaram pela desvinculação entre Igreja e Estado, implantação do casamento civil e da cidadania plena para não-católicos.

 

Protestantes brasileiros eram anti-obscurantistas, eram os únicos cristãos que baseavam sua fé no estudo da Bíblia, desenvolvendo inclusive, por causa disso, a ciência lingüística no Brasil. Pastores (vários deles ex-padres) eram os únicos dispostos a viajar pelos grotões abandonados levando conforto espiritual e boas novas de uma fé progressista – num país abandonado por Roma e asfixiado pelo ultra-montanismo de uma igreja voltada apenas para os bem-nascidos.

 

Em que lugar neste caminho o protestantismo brasileiro se perdeu? Em que lugar abandonou as raízes que fincava na cultura da gente simples do país? Em que lugar abandonou as posturas progressistas que permitiram ao protestantismo provocar a primeira fissura na hegemonia católica estabelecida pela monarquia lusa do padroado?

 

Suspeito que em algum momento durante os anos 1950-60, quando missionários fundamentalistas norte-americanos implantaram diversas instituições para-eclesiásticas no Brasil, organizando acampamentos, fundando editoras, livrarias, conjuntos musicais, trazendo uma fé irracional, trabalhando com crianças e jovens (APEC, Palavra da Vida, MPC, JOCUM, Cruzada Estudantil e Profissional para Cristo) para formar gerações de abestalhados/alienados que perderam o compromisso com o país, com a fé, com o exame das Escrituras, com a liturgia, com a tradição não-conformista do protestantismo.

 

Foi-se o tempo que ser evangélico era saber cantar a quatro vozes os hinos que falavam de uma fé singela, capaz de superar o sofrimento organizando-se em congregações auto-geridas que estudavam as Escrituras e praticavam o amor cristão pela via da solidariedade contagiante. Em que os evangélicos eram pessoas simples que sabiam que o Evangelho era a mensagem do desapego aos bens, de uma ética rigorosa do trabalho, do respeito ao próximo como manifestação do respeito a Deus.

 

As primeiras manifestações do evangelicalismo doentio puderam ser vistas no apoio inconteste ao Regime Militar brasileiro, baseado numa leitura tacanha de Romanos 13. Não era mais que o interesse geo-político dos EUA no tempo de Guerra Fria, que ditava o que passava a significar o ser evangélico no Brasil. Os que ousaram enveredar pela Teologia da Libertação, com uma reflexão própria a respeito da realidade local, foram expurgados das igrejas e do sacerdócio – sendo o caso mais emblemático o do pastor presbiteriano Rubem Alves. Os luteranos e anglicanos parece que restaram como únicos oásis diante do domínio absoluto do fundamentalismo, que tragou todos os grupos oriundos do calvinismo (batistas, presbiterianos, congregacionais) e suas dissidências pentecostais.

 

Neste contexto, há quem acredite que ser evangélico hoje no Brasil é ser fundamentalista, mesmo que para isso precise esquecer o cerne do Evangelho que é a solidariedade política radical como manifestação do amor ao próximo. Ser evangélico hoje parece que se reduziu à panacéia do culto-show, o qual nem os outrora “tradicionais” batistas podem se dar ao luxo de não aceitar. Niguém mais lê a Bíblia sem ser guiado pelo pastor. Ninguém mais acha que a fé se constrói pelo estudo criterioso. Ninguém mais acha que tem o dever de agir pelo bem comum. Ser evangélico reduziu-se a cantar uns hinos de olho fechado e mão levantada, chorar nos “cultos” e obedecer cegamente aos pastores oportunistas que cada vez mais abundam.

 

Mas não há nada menos evangélico do que isso. Ser evangélico hoje no Brasil significa lembrar-se do Evangelho, do Cristo dos evangelhos, do amor ao próximo como cerne da mensagem, da pobreza apostólica, do estudo das Escrituras, do radicalismo democrático que não aceita a autoridade centralizada, que se exerce no congregacionalismo dentro da igreja, na assistência desinteressada aos pobres fora dela, na política feita não como interesse mesquinho, mas na luta radical e democrática pelo bem comum, pela igualdade e pela justiça.

 

Isso não pode ser traduzir, de forma nenhuma, em preconceito e violência contra pessoas de orientação sexual qualquer. De modo que não existe justificativa plausível para algum evangélico ser contra o PLC 122. É o que faz o pastor Paschoal Piragine, da Primeira Igreja Batista de Curitiba, como pode ser visto num vídeo que está se espalhando de maneira “viral” pela internet [abaixo]. Nesse vídeo o pastor incita os fiéis a não votarem no PT, por ele ser contra a “fé bíblica”. Curiosamente, isso é feito sem apoio em nenhum versículo bíblico (não seria difícil conseguir um para ser apresentado de forma distorcida, mas nem a isso estão se dando mais ao trabalho – que os fiéis não lêem a Bíblia mesmo). A autoridade do pastor, mesmo que embasada em mentiras, é suficiente para autorizar qualquer discurso. Cadê o livre-exame? Cadê a autonomia dos leigos diante do clero? Houvesse algum evangélico na Primeira Igreja Batista de Curitiba e o referido pastor seria destituído na próxima assembléia.

 

É claro que isso não vai acontecer. Assembléias batistas viraram instâncias de homologação de pastores show-men que trazem as decisões prontas para o pessoal levantar a mão. Batistas de igrejas como a Primeira Igreja Batista de Curitiba e a Igreja Batista do Bacacheri não se dão nem ao trabalho de conferir a autenticidade dos diplomas de doutorado que seus pastores apresentam como credencial. Preferem ser enganados, imaginando que ao obedecer cegamente aos “ungidos de Deus” estarão a reservar um galardão no paraíso celestial – por mais que tal imagem não encontre fundamento bíblico-teológico há pelo menos uns 200 anos.

 

Ser evangélico no Brasil de hoje deveria significar uma luta contra a desigualdade, a miséria e a pobreza que assolam o nosso país. Deveria significar não permitir que líderes carreiristas assumissem como a face da igreja e da fé. Deveria significar a maturidade de não trocar conforto espiritual de bons oradores em troca de uma obediência cega. Deveria significar que não se pode abandonar a função mental de crítica racional.

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